O Farol é cinema visceral no melhor da sua forma: ousado, enriquecedor e instigante
Se Alfred Hitchcock ainda estivesse vivo, um espectador desavisado poderia muito bem acreditar que O Farol é uma obra concebida pelo diretor britânico falecido em 1980. No entanto, a obra do “Mestre do Suspense” está longe de ser a única referência do filme escrito e dirigido pelo norte-americano Robert Eggers (A Bruxa).
As escolhas estéticas dão o tom logo no início. Exibido em preto e branco, O Farol foi gravado em razão de aspecto de 1:19:1, formato conhecido como Movietone e utilizado apenas entre 1926 e 1932, na transição do cinema mudo para o cinema sonoro. Seu resultado é uma imagem praticamente quadrada e que, nesse caso, contribui para acentuar a sensação claustrofóbica de estar preso a uma ilha remota.
O filme acompanha a chegada de dois guardiões a um farol localizado em uma misteriosa e remota ilha da Nova Inglaterra no final do século XIX. Inicialmente, a dupla terá a missão de cuida do local por quatro semanas, mas as condições inóspitas da região somadas à relação fria entre os personagens fazem com que a passagem de tempo seja algo relativo – uma eternidade.
Preenchimento de espaços com a ausência
Aliás, ausência é uma boa palavra para definir o que vemos. O estranhamento causado nos primeiros minutos, em que praticamente não há diálogos, contribuiu para criar uma atmosfera angustiante. Ouvimos apenas o som de um barco que parte, das ondas quebrando nas pedras e dos pássaros que habitam a região.
A relação entre Thomas Wake (Willem Dafoe) e Thomas Howard (Robert Pattinson) é o prato que passa a ser servido a partir do primeiro jantar de ambos na ilha. Mais velho, Wake assume uma postura de chefe perante o novato Howard. Desprezível em todos os sentidos possíveis, ele contribui para tornar a estadia de Howard ainda mais difícil, submetendo-o a todas as tarefas de rotina enquanto se responsabiliza, de forma quase doentia, apenas pela manutenção da luz.
Os poucos momentos em que ambos conversam revelam a riqueza do roteiro construído pelos irmãos Eggers. A opção por diálogos utilizando um inglês arcaico vira palco para que tanto Dafoe quanto Pattinson construam atuações magistrais. Enquanto Dafoe parece ser capaz de uma transformação completa, recitando citações metafóricas complexas com uma maestria ímpar, Pattinson sai de um estado inicial de indiferença e constrói um personagem que vai às vias da loucura, em uma transição que impressiona.
Esqueça o Robert Pattinson de Crepúsculo, pois aqui parece se tratar de outro ator – que com um material rico em mãos aproveita a oportunidade para mostrar o seu talento. Ainda que pareça forçado em alguns momentos, o contexto da produção é mais do que condizente para atuações com um quê de teatralidade se sobressaiam. O resultado é assombroso, para dizer o mínimo.
Tecnicamente impecável e com uma direção primorosa
Que um filme como O Farol tenha sido produzido nos dias de hoje já é uma vitória por si só. Longe de recair em clichês e tecnicamente impecável – atente à direção de arte primorosa que potencializa a hostilidade da ilha e edição de som, que parece ter atentado a cada detalhe como o vento uivante incessante ao fundo e sirenes irritantes que vem e vão. Para o espectador, trata-se da oportunidade de vivenciar um pesadelo de perder o fôlego em pouco menos de duas horas de filme.
Por último, mas não menos importante, a produção lida ainda com muitos simbolismos e aposta na ambiguidade para deixar a sua mensagem. O farol, enquanto símbolo fálico, é apenas um dos simbolismos para ilustrar a submissão de Howard a Wake (que mantém uma relação quase erótica com “a luz”). As alucinações eróticas de Howard com sereias e sua luta contra os próprios fantasmas do passado – ele aparentemente matou alguém e, não sabendo como lidar com isso, “foge” para a ilha em busca de um recomeço.
O poder que a luz exerce sobre Wave e que este exerce sobre Howard se assemelha a uma condição hipnótica – uma das cenas do filme tem inspiração no quadro Hypnose, do alemão Sascha Schneider. Esse fascínio pelo domínio sobre o outro e pelo controle de si mesmo, na verdade, se torna uma obsessão capaz de levar ambos à loucura. O desfecho da produção, da mesma forma, é catártico e perturbador.
O Farol é cinema visceral no melhor da sua forma: ousado, enriquecedor e instigante.
Nota 9.
Sinopse
O ex-lenhador Ephraim Winslow e o faroleiro Thomas Wake pisam em uma ilhota isolada na costa da Nova Inglaterra do final do século XIX. Nas quatro semanas seguintes de trabalho árduo e condições desfavoráveis, os homens de boca fechada não terão mais ninguém para fazer companhia, exceto um ao outro, forçados a suportar ressentimentos reprimidos e ódio crescente.
Ficha Técnica
- Título original: Dog.
- Origem/Ano: Estados Unidos, Canadá, Brasil/2019.
- Direção: Robert Eggers.
- Roteiro: Robert Eggers e Max Eggers.
- Produção: Robert Eggers, Youree Henley, Lourenço Sant’Anna, Rodrigo Teixeira e Jay Van Hoy.
- Fotografia: Jarin Blaschke.
- Montagem: Louise Ford.
- Música: Mark Korven.
- Elenco principal: Robert Pattinson (Thomas Howard), Willem Dafoe (Thomas Wake), Valeriia Karaman (Sereia) e Logan Hawkes (Ephraim Wislow).
Premiações
Prêmio FIPRESCI no Festival de Cannes.
Indicado ao Oscar de Melhor Fotografia.
Indicado ao BAFTA de Melhor Fotografia.
Curiosidades
O Farol foi exibido pela primeira vez no Festival de Cannes, na França, em 19 de maio de 2019. No Brasil, estreou nos cinemas em 02 de janeiro de 2020.
O orçamento de O Farol foi de US$ 11 milhões e o filme arrecadou US$ 18 milhões nas bilheterias em todo o mundo.